Durante cerca de um mês e dez dias, Ivo Meirelles e sua equipe
estiveram completamente envolvidos com a produção do CD e do DVD dos
sambas da Série A para o Carnaval 2016. Em todo esse período, o produtor
não concedeu nenhuma entrevista sobre o trabalho, uma vez que desejava
falar apenas com o resultado em mãos. Após a audição dos sambas pelos
dirigentes do grupo, Ivo comentou a produção, o conceito com o qual
trabalhou, a relação com as escolas, a opinião sobre o álbum anterior e o
propósito do projeto de DVD que apresentou para as escolas. Em conversa
com o CARNAVALESCO, ele fez uma análise profunda do
projeto para o próximo carnaval em comparação com o CD que produziu para
o ano de 2009 e relatou diversas experiências relacionadas à maratona
de gravações que encarou desde o começo de agosto:
- Particularmente, gosto do resultado. Sempre que a gente termina, a
gente percebe que poderia ter conseguido um resultado melhor. Acabei
pegando esse trabalho de surpresa e não tinha me programado pra isso. Se
eu tiver a oportunidade de ser novamente o produtor para o Carnaval
2017, muita coisa eu vou mudar. Em termos de conceito, de microfonação e
outras coisas. Atingi 80% do que eu gostaria. Agradeço demais à Lierj,
principalmente ao Déo e ao Thor, por terem acreditado no projeto -
afirma Ivo.
Ivo
já havia produzido o CD da Série A em 2009, na época, gerenciada pela
LESGA. Hoje, ao lado da Lierj, ele conta que teve um aporte maior e
também que dispôs de mais tempo para realizar a produção: - Esse projeto
é uma continuação de um embrião que eu comecei em 2009, quando produzi o
CD. Naquele ano, fui buscar R$ 50 mil para que os presidentes não
tivessem que pagar pelo CD. Foi uma ideia criada para ser continuada e
acabou não tendo essa continuidade, não pude dar progressão para aquela
ideia. Nessa segunda etapa, acredito que essa ideia contou com um apoio
de uma entidade que naquela época a LESGA não me deu e acredito que o
produto final dessa ideia viria num próximo trabalho. Como resultado de
ter as baterias assinando o samba e os segmentos no estúdio participando
e de ver os intérpretes virando ainda mais cantores, já me deixa muito
feliz. Acho que esse CD mostra isso: o puxador sendo cantor, o mestre
sendo arranjador e os segmentos fazendo parte do trabalho. Acho que tem
muito da cara das escolas nesse CD e no DVD e é o que me deixa feliz com
o resultado.
Comparando as duas produções, Ivo relata que as condições para as
gravações foram bem diferentes na primeira oportunidade e destaca a
participação de sua equipe na nova produção como um grande diferencial: -
Em 2009, eu não tive estúdio e nós fomos gravar no Circo Voador. Eu não
tinha uma produção pra me dar suporte em muita coisa que eu tive com a Lierj. Também não pude escolher microfones certos para usar em momentos
específicos. E não tive o mais importante que é o tempo: tivemos duas
noites para gravar tudo e na semana seguinte entregar. Ninguém consegue
trabalhar com essa pressão toda. Nessa segunda chance, tive tudo isso e
pessoas ao meu redor que me deram opiniões para mostrar o que estava
legal e o que não estava. Em 2009, eu estava sozinho e qualquer
resultado era meu. Agora estamos trabalhando em equipe e quando você
trabalha em equipe, o resultado é muito melhor. Apesar de ter uma
semelhança com o trabalho anterior, as condições de trabalho foram muito
melhores - conta o produtor no Estúdio Visom, em São Conrado, onde o
álbum foi gravado.
Para 2016, Ivo contou com o auxílio do técnico de gravação Ricardo
Dias e de seu assistente, Brendan Fausti. Além disso, sua filha, Vitória
Meirelles, também auxiliou no projeto. O diretor de carnaval da Lierj,
Marcos Marino, esteve envolvido na organização do cronograma e marcou
presença em todas as gravações do estúdio envolvendo as escolas.
Relacionamento com os integrantes das escolas ocorreu 'na mesma língua'
Um
dos grandes desafios para a produção do disco poderia ser o
relacionamento com a equipe das escolas que, ao lado do produtor,
constroem suas faixas para o álbum. Ivo conta que não teve problemas
para se relacionar com os diretores, intérpretes e mestres de bateria,
porque fala a mesma linguagem que eles: - Eu não tive a menor
dificuldade em lidar com as pessoas das escolas envolvidas nas gravações
porque nós falamos a mesma língua. Estou com 53 anos de idade e morei
no Morro da Mangueira até os meus 48. É uma linguagem que não precisa de
tradução pra mim. Sei dizer não, sei dizer sim, sei ser carinhoso e sei
dar bronca. Aprendi na vida. A minha relação com os componentes foi a
melhor possível: brincamos quando tínhamos que brincar e falei sério
quando precisava. A resposta veio naturalmente, porque não tinha ninguém
pra traduzir nossa conversa. Eu sou comunidade e não mudei porque saí
da Mangueira. Continuo com as mesmas manias, linguajar e jeito. Nossas
conversas aqui no estúdio foram sempre bem entendidas, faço parte desse
povo.
'Não ouvi o disco do ano passado', conta Ivo
A produção de Ivo Meirelles no CD é uma das novidades da Lierj para o
Carnaval 2016. O projeto dele substituiu o do produtor Leonardo Bessa,
que conquistou o Disco de Ouro em 2015. Questionado se essa conquista
era uma responsabilidade a ser mantida em seu trabalho, Ivo relatou que
não ouviu o disco anterior por estar alheio ao Carnaval do Rio, mas
ponderou que dessa maneira não se prendeu ao que vinha sendo feito,
conseguindo construir sua ideia para o álbum sem o entrave de se
assemelhar ao CD anterior:
- Sinceramente, não pensei no álbum antigo. Não tenho vergonha de
falar que não ouvi o disco do ano passado. Até por ter saído da Mangueira da maneira como eu saí, eu estava muito alheio ao Carnaval do
Rio. Estou morando em São Paulo e me recusei a trabalhar com o Carnaval
de lá, porque não conheço aquele universo. No ano que passou, nem do
Grupo Especial eu tenho o disco ou conheço os sambas. Foi muito
gratificante eu pegar esse trabalho crú, sem ter conhecido o histórico
dele, porque eu quis impor uma ideia, impor uma marca e eu não queria
ficar preso a nada. Talvez se eu tivesse escutado o CD anterior, talvez
eu tivesse tentado chegar perto para não sofrer críticas. Acho que estou
num caminho completamente diferente que é buscar que as escolas tragam
sua marca. Toda vez em que estive na Mangueira e a Escola ia gravar a
sua faixa, eu me metia na produção, porque eu queria que o samba da Mangueira tivesse a cara da Mangueira. É muito chato quando você pega um
disco sem a marca da escola carimbada. Quando pego um disco de samba,
espero ouvir uma batida de caixa ou uma afinação de surdo e reconhecer a
escola. Acho que falta isso nos discos de samba-enredo. Quem conhece
suas escolas de samba, quando escutar a bateria, vai perceber que é a
bateria da sua escola.
Baterias 'assinaram' todas as faixas do CD
A valorização das baterias da Série A foi uma das buscas de Ivo para o
CD. Com esse foco, ele inseriu em todas as faixas um grito de guerra
dos ritmistas de cada escola, ao fim da segunda passada do samba, além
de uma saudação do cantor ao mestre: - Foi feito o simples: abrir a casa
para eles tocarem. Teve gente que entrou aqui e que nunca entrou num
estúdio. Nunca colocou um fone de estúdio no ouvido e não sabia o que
era 'clique'. O som eles sabem fazer e você só tem que registrar, esse
foi o meu papel. Todas as faixas têm o grito de guerra da bateria.
Sempre fui muito defensor desse segmento, não concordo muito com o
frisson em torno das rainhas de bateria sem saber o nome do mestre.
Sempre me incomodou. Em 2000, eu fazia uma Churrascada de Mestre e
também já fiz a Feijoada. Há muito tempo venho tentando dar voz aos
mestres. Quando vi que os ritmistas gostavam do apelido da bateria,
comecei a ampliar isso. Fiz isso rebatizando a bateria da Mangueira como
'Surdo Um' e percebi o orgulho de cada um. Nas gravações, tinha
ritmista que não sabia que a bateria tinha um apelido. Chamei eles pra
darem voz e mostrarem seus apelidos e gritos de guerra pro mundo do
samba: todas assinam nesse disco o seu nome, seu apelido e como gostam
de ser reconhecidas. É uma identidade criada ou resgatada e que eles
estão curtindo demais.
'Foi uma loucura', conta Ivo sobre o cronograma apertado
Mesmo com a organização de um cronograma junto à Lierj e às escolas
da Série A, alguns imprevistos e o restrito tempo de locação do estúdio
tornaram a rotina de Ivo e de sua equipe complicada durante os dias de
finalização do projeto. Ele chegou a dormir no estúdio, conforme relata:
- O cronograma não foi tranquilo não. Fiquei duas noites sem dormir e
cheguei a dormir até dentro do estúdio, assim como outros da equipe.
Tínhamos uma programação que achávamos que não ia atrasar, mas também
tivemos que atender algumas escolas. Por exemplo, se o cantor da escola
não pôde vir no dia estipulado, não podíamos deixar a faixa dela só com o
coro. Tivemos que abrir essas exceções óbvias e não tínhamos mais dias a
repor no estúdio que já estava alocado para outras produções. Tivemos
que dar conta trabalhando em tempo integral. Acabei dando folga para o
técnico que trabalhou comigo, o Ricardo Dias, em um dos dias, mesmo
precisando dele comigo para manter o padrão do som do disco. Foi uma
loucura.
DVD trará a oportunidade do sambista 'se ver', mas ainda é embrionário
O DVD da Série A foi produzido sem custo para as escolas e Ivo o
classifica como um 'presente' seu para a Lierj. Apesar da dedicação
empenhada no projeto, que trilhou as quatorze escolas do grupo, algumas
vezes com equipes trabalhando simultaneamente em localidades distintas
do Rio de Janeiro, Ivo destaca que se trata de uma fase embrionária. Ele
acredita que a iniciativa pode incentivar a produção de novos produtos
audivisuais que retratem o sambista em sua essência, além do que os
desfiles já fazem:
- Eu tive verba para fazer um disco. O DVD é um presente que eu estou
dando para a Lierj. As condições que tive para o DVD foram as mesmas
que tive para fazer o CD em 2009. A gente não teve uma produção paga
para isso. Eu quis dar esse presente para as escolas da Série A como eu
quis dar em 2009 um CD em que elas não gastaram dinheiro. A semelhança é
que esse DVD eu fiz 'na marra', por minha própria conta, com meus
sócios na nossa produtora, com minha filha me substituindo nos dias em
que eu tive que viajar e não podia estar nas quadras. Teve como base
muito sacrífico e muito amor envolvido. Esse DVD é o embrião para que a
Lierj e outras entidades que trabalham com carnaval possam daqui pra
frente pensar numa forma de mostrar o sambista sem ser no desfile: ele
na quadra, na sua essência, com pé no chão, sujo, de maquiagem,
desarrumado, pulando e defendendo o samba pelo qual está torcendo. Esse
DVD foi um sonho que acabei realizando. O sambista precisa disso: ganha
voz no CD, mas ganha a imagem dele no DVD. A gente vê o DVD e chora de
emoções em algumas cenas. Muitas daquelas pessoas nem sabem que é para
um DVD. Muita gente que me encontra nas quadras me pergunta onde vai
passar. A gente quer que as pessoas nos vejam nas quadras ano que vem e
se abram para a gravação do DVD, criando essa coragem de aparecer.
Ivo conta que não mediu esforços para filmar o DVD. Em uma ocasião,
na escolha do samba da Alegria da Zona Sul, ele relembra que chegou a se
deitar no chão para pegar o melhor ângulo dos compositores do samba
vencedor comemorando sua vitória: - As pessoas gostam de se ver. Quando
as pessoas veem o desfile na TV, ninguém vê de novo, assim como uma
reportagem. Essas pessoas não tem tecnologia em casa pra ficar buscando
isso tudo de novo. Quando elas tem o DVD na mão em que ela se vê na sua
essência fazendo o que gosta, que é sambar e cantar, não tem preço. É
bom a gente retratar as pessoas assim. Por isso não medi esforços pra
fazer o DVD e em alguns momentos peguei eu mesmo a câmera e fiz como eu
gostaria de ser retratado, cheguei a deitar no chão. Quando eu tinha 20
anos, não tive essa oportunidade. Estou apenas tentando corrigir o tempo
e mostrar o que não foi mostrado - finaliza.
FONTE: CARNAVALESCO